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Poeta catarinense
com dedos podres
e mania de flâneur

Autor de "Cá Entre Nós -
Odes de Alusão e Ilusão"

AOS NETOS DO MILÊNIO



[Neto do milênio,
a História te fará justiça.

És Todos ao passo
em que és Nenhum.

A velocidade do passado
te inebria. A poeira do futuro
te sufoca.

Desta sina, o teu discurso.
Desta ruína a tua causa.

Do ser saturnino que és,
nos escombros tua raiz.]


– Sinto-me pouco muito pouco unívoco
no oco mais oco do sentido do pouco
à margem de tudo à beira de nada
in loco no precipício da pequenez
em larga escala que me diminui
com seu tamanho que me comprime
contra o seu corpo


– Se eu tivesse que dar um título
a minha própria vida seria:

Há Tantos Como Eu
Que Não Pode Haver Tantos.


– Réplica. Simulacro. Holograma. Duplicata.
Cópia da cópia. Reprodução. Diferentes versões
para a mesma coisa. Diferentes nomes para
a mesma versão. Espectro; fantasmagoria, aparição.
Duplo e doppelgänger. Traslado falso. Reflexo embaçado.
Exterior bem decorado. Reles imitação.


– Eu antes tinha querido ser os outros.
Eu antes tinha querido ser o que não fora.
Eu antes tinha querido ser. Eu antes tinha querido.
Eu antes. Eu, antes, tinha tudo.
E hei de viver para sempre num tempo
que está por vir, sempre à margem do que não foi,
irremediavelmente cônscio de tudo o que veio antes.
Haverei de ser lembrado só por quem não me conheceu. 


– Consultei as cartas - as conchas - os astros - as trincas - os túmulos - as tralhas - os tetos enviesados. Os auspícios, os oráculos, as runas e os rumores cegos. Mas quando, quando, quando, quando haverá de ser a minha estreia? Senão agora-agora-agora-agora. Sentirei quando estiver a caminho? Virá até mim em volteios? Qual a data e a hora em que devo me transformar em mim? Como fazer com que caiba no calendário? Quando é que começo a me parecer comigo? Já chegamos? Falta muito, ainda?


– (Quando é que se faz meu próprio palco? Se tudo até então não passou de um ensaio...) Estou à espera da montagem e dos montadores. Estou à espera de um roteiro qualquer. Estou à espera de um espaço em branco, de luzes aéreas. Estou à espera.


– Eu não conseguia. A grande verdade é que eu não consigo. Mas eu queria querer conseguir. Eu quase consegui. Passei como se raspasse na lâmina e deixasse para trás uma fina lasca. Estou em busca dessa fatia que falta.


– Minha terra tem arranha-céus
onde repousam morcegos hi-tech.
Nosso céu tem o pó do mármore.
Nossas florestas têm o odor do aço.
Em rastejar sozinho à noite,
estou em casa – como nunca estivera.
Deuses afogados nesta terra
em rios de liquor escuro
e oxidado.


– Tenho às vezes a impressão de que toda a minha vida poderia ser exposta em uma meia parede, aberta à visitação pública. Tenho a estranha impressão de que a fala dos outros é labiríntica, repleta de curvas sinuosas. Às vezes sinto que conspiram contra mim. Por vezes, sou o próprio Minotauro para este labirinto; por outras, o único desencontrado. Às vezes, meu reflexo na tela plana me faz parecer muito mais bonito do que realmente sou. Às vezes nem me reconheço nas fotografias que tirei há pouco, embora tenha nítida impressão de que os outros me intuem por inteiro. Às vezes gravo minha própria voz e ouço-a repetidamente na intenção de aprender a modulá-la. Se quero às vezes me comunicar e não consigo é porque desaprendi pela falta de prática.


– Tenho a sensação a que deve sentir a ave diante da porta escancarada da gaiola, ao descuido do dono; mas não há dono, nem há gaiola. Só uma ave habituada ao cativeiro, assustada com a perspectiva do voo. O que é que se faz com tanta liberdade - quem souber, me diz.


– Entedia-me profundamente o pensamento de que o novo sempre vem; 
faz o novo parecer algo de abatido. Eu quero o novo mais novo que o que 
ainda está para sair, o qual nem se menciona porque se encontra ainda 
em estágio de feitura.


– Vou-me embora para o Mundo,
lá sou amigo do rei!

Não levo nada desta terra,
a qual nunca hei de pertencer.

Lá tenho o homem que quero
e a mulher que almejo ser.

Basta girar o globo:
para onde apontar o dedo,

mudar-me-ei!
Qualquer terra que não seja esta,

com seus espectros feito gente
e suas más origens;

aqui eu não sou feliz.
Aqui, muito cedo é já
tarde demais.

Lá, vive-se o futuro!
Lá o ordenado é mais farto,

há belos parques
e o ar é até mais puro.

Aqui, o futuro pede bênção
ao passado e deixa os sapatos
na porta antes de entrar.

Lá não se mata gente pelas ruas,
é outra civilização; o povo é cheiroso
e usa gola rulê.

Vou-me embora para o Mundo
- seja Primeiro ou Décimo Quarto -,

e como diria Torquato,
qualquer lugar haverá de ser

melhor que aqui!


– Ninguém solta a mão de ninguém. Não há espaço mais democrático que as fendas 
e os vãos: o buraco é fundo acabou-se o mundo. O primeiro a deslizar para dentro 
agarra-se aos demais, um a um escorregam todos juntos até não restar 
mais ninguém à vista. Please mind the gap, Sirs.


– Minha terra 
tem matizes 
metálicas,

cortinas 
envidraçadas,
tentadoras luzes 
de neon.

As máquinas 
que silvam
por lá

cá ressoam 
dentro de mim.


– Farsante. Trapaceiro. Embusteiro. Burlão. Tramoieiro. 
Tratista. Solerte. Escroque. Girigote. Trambiqueiro. Patifão. 
Belontra. Tunador. Tracambista. Fraudador. Batoteiro. Velhaco. 
Aldrabão. Caloteiro. Trampolineiro. Charlatão convicto.


– Há, entre os habitantes de Faium (ou será Marselha) uma característica deveras peculiar: têm plena consciência de que um dia haverão de morrer. Isto lhes confere notável capacidade de se manterem sempre em movimento, mas, em contraponto, equivalente incapacidade de gerirem o rumo de suas andanças. Por viverem pouco, propõe-se a tudo, a toda sorte de absurdos.


– Disseram-me que em Luxemburgo (ou em Massaua, ou Dorra), instaurou-se uma lei que determina: é proibido troçar da vida humana. Dessa forma, a vida, por lá é um assunto bastante sério. A pena é severa para gracejos de escárnio ao passo em que divergem as jurisprudências: trata-se de troça direta, indireta ou eventual? Quais os agravantes? Caberá recurso de defesa? Há, inclusive, pessoas que ficam presas pelo resto de suas vidas.


– Reparei, em minhas andanças pelos Países Baixos (ou pelos Países Altos, ou pelo Oriente Médio, ou pela Moldávia - já não me recordo bem - ou pelos desertos da Trácia) que o tempo por lá é algo muito importante. Todos se lamentam pelo tempo que passou e se põe a suspirar pelo tempo que há de vir.


– Sou cidadão do Mundo.
Onde moro nunca é a minha casa.
Minha vida é uma galeria aberta.
Exposta a comida que como,
 os bares em que perambulo,
minha milimétrica assimetria,
minha indumentária, as linhas
com que trabalho [só as de alta frequência],
as adoráveis senhoritas e os vistosos rapagões
que me acompanham, meus motes e meus lemas,
minhas frases de impacto [de caracteres contados],
meus móveis novos  para a sala entre vasos de plantas
e fotos da última viagem, viagens antigas a indicar a vontade
de uma próxima viagem, velhas vontades a assinalar uma outra,
uma próxima cidade, um outro itinerário.
Sou meu próprio cartão de visitas,
ao alcance e à espera
de um toque
mínimo.


[Te acalma,
a História te dará moldura.

És todo Movimento
ao passo em que és Inércia.

Deslizas de instantes,
de precificados desejos
que te roem por dentro.

Repara em como termina
o dia de hoje, mais cedo
que o de ontem.

Neto do milênio
- desperta de ti mesmo.]